A procura da nossa turma

Camila Tardin
4 min readApr 18, 2021

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Camila Tardin*

Esty, protagonista da série Nada Ortodoxa — google imagens (reprodução)

Em todo filme a que assisto e livro que leio, busco nos personagens algo com que eu me identifique. Pode ser a personalidade, uma frase, uma atitude, um pensamento, uma experiência, o contexto da história ou uma vontade. Não tem como não fazer analogia com a própria vida. Dependendo do assunto, passo semanas relembrando as cenas e até os pormenores do que vi ou li.

No ano passado assisti a duas séries interessantes na Netflix: Nada Ortodoxa (Unorthodox) e Anne With an E, um desafio e tanto para mim que sou mãe de duas crianças ainda pequenas e que, portanto, demandam mais tempo e dedicação, além dos afazeres domésticos e profissionais, e administrando o equilíbrio de tudo isso junto.

Mesmo com a correria para gerenciar o tempo nessa nova rotina, uma das coisas importantes que a pandemia da Covid-19 me ensinou foi parar de negligenciar alguns dos pequenos (leia-se grandes) prazeres, entre eles o de assistir a filmes — obviamente sem desculpas e no momento que for oportuno.

Voltando às séries, em Nada Ortodoxa, a jovem judia Esty, de 19 anos, busca pela sua independência ao fugir de Nova York para a Alemanha quando se dá conta da prisão que sente no casamento arranjado e no rigor da sua religião. Em Anne With an E, a protagonista Anne é adotada, por engano, por um casal de irmãos de Green Gables depois de treze anos vivendo em orfanatos.

Esty tem vários dilemas internos. Aparenta um semblante triste, cansado e enrijecido, passa a impressão de estar sempre sufocada — com aquela falta de ar que sentimos quando não pertencemos a uma turma, família, cidade, país, comunidade, trabalho, relacionamento, religião ou cultura.

Anne tem uma postura mais otimista, apesar de sua trajetória de vida difícil e o esforço diário para conseguir se encaixar na escola com os amigos e na comunidade local pelo fato de ser órfã, adotada, ruiva e diferente.

Anne da série Anne With an E — google imagens (reprodução)

São inúmeros os insights que tive sobre ambas as séries, mas o principal deles e que chamou minha atenção foi o que há de comum nas duas protagonistas e em vários outros personagens do cinema e da literatura: a sensação de falta e a constante busca pelo pertencimento, temas que, curiosamente, identifiquei com mais clareza na versão original do conto “O patinho feio”, analisado pela psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés em sua obra “Mulheres que Correm com os Lobos”, cujo título do capítulo sobre o patinho peguei emprestado para este artigo.

Quem nunca escutou na infância a história do patinho feio? Ele sempre esteve presente nos livros infantis de casa, da escola, de bibliotecas e, inclusive, no cinema entre os clássicos da Disney. Até ler o texto original e discuti-lo com outras mulheres que estudaram esta obra da Clarissa no clube de leitura Lupus In Útero, de Cuiabá-MT, meu conhecimento sobre este conto era superficial e com uma interpretação que se restringia, principalmente, ao bullying sofrido pelo patinho por ser diferente dos demais, sua baixa autoestima e a necessidade de atentar para as qualidades interiores além das aparências.

Cena do filme "O patinho feio", da Disney

De maneira geral, a história traz essas mensagens também, mas vai além disso. O conto original, escrito por Hans Christian Andersen, foi publicado pela primeira vez em 1845. Andersen criou várias histórias sobre o arquétipo do órfão. Segundo Clarissa, entre as características do escritor, está a proteção da criança perdida e negligenciada. Ele defende a ideia da procura e descoberta do “nosso próprio grupo”.

Ler o conto original e a análise esclarecedora da psicanalista me proporcionou estabelecer um paralelo com as duas séries, porque tanto Esty quanto Anne e o patinho feio procuram pelo pertencimento e movimentam-se nessa busca em “fazer parte de”, ou seja, o que eu, você, nós já fizemos, fazemos e ainda faremos. Pode ser em diferentes situações, momentos e ambientes, o fato é que desejamos pertencer.

Apesar das diversas versões publicadas do conto, Clarissa traz uma interpretação relevante e válida para todas elas. O patinho simboliza

“a natureza selvagem que, quando forçada a enfrentar circunstâncias pouco propícias, luta instintivamente para continuar viva apesar de tudo”.

Ela diz que quando a alma de um indivíduo, que tem tanto identidade instintiva quanto espiritual, é cercada de aceitação e reconhecimento psíquicos, a pessoa sente a vida e a força como nunca sentiu antes:

“Descobrir com certeza qual é a sua verdadeira família psíquica proporciona ao indivíduo a vitalidade e a sensação de pertencer a um todo”.

Nas duas séries, Esty e Anne passam por vários tipos de desafios. São testadas o tempo todo pela comunidade, pela família e por suas próprias mentes, porém, ainda assim, não desistem. Persistem instintivamente como o patinho, que fugiu, mas depois se encontrou com sua turma de cisnes, que o reconheceu como sendo um dos seus antes dele próprio.

Assim como Esty e Anne, podemos levar anos nos sentindo estrangeiros, deslocados, diferentes ou esquisitos na escola, na profissão, entre os amigos, na família ou em determinadas circunstâncias, mas quando escolhemos caminhar para compreender a nossa verdadeira individualidade e o que realmente nos traz paz, equilíbrio e felicidade, essa sensação de pertencimento surge e apazigua tudo. Até lá, como aconselha Clarissa: “Aguarde. Confie. Faça a sua parte. Você descobrirá seu próprio caminho”.

*Camila Tardin é jornalista, mora em Cuiabá-MT. camilatardin7@gmail.com

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Camila Tardin

Sou uma Comunicóloga, Ghostwriter de LinkedIn e mãe do Pietro e da Marina.