O vento e o silêncio

Camila Tardin
4 min readJun 23, 2021

--

Cena do filme “O som do silêncio”

No último fim de semana o vento entrou na minha casa com uma constância rara para nossa calorenta Cuiabá. Minha sorte é que onde moro atualmente ele enfrenta poucos obstáculos no caminho até atravessar pela sacada e janelas. Chega com aquele jeitão livre de ser, sem pedir licença, porque sabe que é sempre bem-vindo e não precisa de convite.

Acho que meu filho também percebeu esse comportamento inusitado. Pouco antes de eu terminar de arrumar a mesa para servir o almoço, ele me perguntou: — Mamãe, você sabia que o vento é invisível?

Para mim foi um tanto interessante escutar isso, pois eu estava naquele exato momento atenta ao seu frescor e vigilante para que nenhuma porta batesse com força. Na pressa (desnecessária) para finalizar a preparação da mesa e travar as portas na parede para o vento continuar seu percurso, só respondi que sim, sem estender a conversa que certamente teria sido mais estimulante ainda.

Depois do almoço as crianças dormiram e fui assistir a um dos filmes vencedores do Oscar de 2021. Atraída pelo título, escolhi “O som do silêncio” — premiado nas categorias melhor som e melhor montagem. Não havia lido nada a respeito, só marquei na minha lista das vontades. O dia dele chegou acompanhado, é claro, do ventinho persistente.

Enquanto assistia ao longa, o vento continuava sua dança dentro de casa e eu permanecia cada vez mais compenetrada no meu cinema particular. A trama foi se desenrolando e ganhou meu coração, meu fôlego e minha admiração do começo ao fim, quando me dei conta do pouco que conheço sobre este som (do silêncio).

O protagonista Ruben Stone (Riz Ahmed) é um jovem baterista de heavy metal que vive com a namorada, também companheira de banda, em um trailer. Durante uma turnê ele começa a perder a audição muito rápido. Com o apoio e a insistência da namorada, Ruben busca ajuda numa comunidade de surdos.

O filme traz uma experiência sensorial interessante e diferenciada. Comecei a pensar no quanto eu dou pouca atenção a alguns sons da minha rotina — como a água que cai do chuveiro ou da torneira, o barulho da chaleira fervendo e uma série de outros sons que permitimos entrar pela porta do piloto automático. Mas o som do silêncio, ah… este me deixou inquieta.

Para colocar as informações em dia geralmente faço listas. Na maioria das vezes elas não são todas cumpridas, mas estão lá, crescendo. Listas de links de áudios, textos e vídeos para ouvir e ver algum dia aí. E cada vez mais as anotações estão se acumulando aqui, na palma da minha mão, nos blocos de notas do celular, engordando minha lista das vontades, como diria a personagem Raquel no livro A Bolsa Amarela, da escritora Lygia Bojunga.

Às vezes preencho o “vazio” do silêncio com algum item dessa lista para ocupar o tempo — este mesmo que anda com dificuldade de ser só livre, à toa. E por que a gente está sempre com essa urgência de preencher o tempo, de enchê-lo de links, imagens e ruídos?

O longa também apresenta a surdez sob um aspecto além do problema físico. Eu reconheço que não tenho propriedade nenhuma para saber e dizer como é a vida de um surdo, como é a sensação de não escutar absolutamente nada e os desafios de viver sem audição nessa nossa sociedade. Mas compreendi que a falta do som exige um autoconhecimento ainda mais profundo e o desenvolvimento de outras habilidades sensoriais que eu, com minha audição aparentemente perfeita, não aproveito com excelência. Existem outras maneiras de ouvir a vida, as pessoas e de nos expressarmos. O filme mostra isso muito bem e nos faz questionar: E se eu não tivesse mais o som na minha companhia? Como seria? O que eu faria?

A aceitação do protagonista também é um convite para a reflexão. Ruben tenta “consertar” a audição na esperança de que tudo volte a ser como antes — como a nossa esperança de querer que algumas coisas retornem ao “antes de 2020”. Na comunidade dos surdos em que Ruben aprende a se comunicar em libras, a crença predominante é a de que a surdez não é uma deficiência.

“Não é uma coisa para se consertar”, como diz o personagem Joe (Paul Raci) — surdo desde uma emboscada na Guerra do Vietnã — em um dos diálogos que merece reprise. Joe ensina sobre “adaptação”, o que também temos feito ou pelo menos tentado fazer desde 2020.

Terminei de assistir, as crianças acordaram e eu vim aqui só para dizer que o vento, além de invisível (como bem lembrou meu filho), também tem um som peculiar e vai sempre ocupar um lugar especial em mim, aqui em casa e na nossa calorosa Cuiabá. O som do silêncio, que eu não tenho como acessar por links (só aqui dentro mesmo), quero prestar mais atenção daqui pra frente.

Minha crônica publicada no site A Gazeta de 01/06/2021 (https://www.gazetadigital.com.br/colunas-e-opiniao/colunas-e-artigos/o-vento-e-o-silncio/655720)

--

--

Camila Tardin

Sou uma Comunicóloga, Ghostwriter de LinkedIn e mãe do Pietro e da Marina.